Monday, March 02, 2009

A mocinha e o mocinho

O mocinho chegava do trabalho no início da tarde, tirava os sapatos pretos e colocava os pés em cima do sofá. Ia até a geladeira, bebia água direto da garrafa e voltava para o sofá. Pegava o seu objeto predileto e passava horas em frente à TV trocando de canal. Não assistia nada por mais de 8 minutos. Trocava sempre. O que o mocinho mais gostava mesmo era ligar o antigo vídeo cassete e assistir os filmes clássicos e dramáticos. Retrocedia as cenas preferidas e via tudo de novo. Avançava até as melhores e via em câmera lenta e falava junto com a TV e se sentia feliz. Quando o telefone tocava ele dava um “pause” e dependendo de quem era ele esquecia da vida. Olhava para o relógio e se ainda fosse cedo apertava a tecla do “pause” e retomava o filme de onde parou.
Entre uma corrida e outra na praia o mocinho sempre via uma mocinha que corria contrária a ele. Tirou a conclusão que ela morava na outra ponta da praia. O mocinho passou a sair de casa mais cedo e dava a volta outra rua para poder começar a correr na mesma ponta que ele supunha que a mocinha começava a correr. Dois dias seguidos e nada. A mocinha continuava correndo ao lado contrário ao dele. Um dia o mocinho viu a mocinha tomando água de coco não teve dúvida parou na mesma barraca e começou a conversar. Papo vai, papo vem, trocaram número de telefone e tempos depois estavam namorando.
O namoro ia bem. Cinema. Shopping. Chopp. Barzinho. Livrarias. Praia. Festa de família. Festa do trabalho. Vídeos em casa. Casa de amigos. Viagens com amigos. O mocinho amava a mocinha e a mocinha também o amava. Muitas queimas de fogos em Copacabana, em Salvador e o namoro continuava firme e forte. Um dia o mocinho achou que havia muita cobrança da mocinha. Sabe-se Deus de onde ele tirou isso. Ele queria respirar. Ele queria espaço. Ele queria tempo para deitar no sofá e trocar de canal. Ele se sentia um elefante dentro de um fusca. E os passeios foram reduzidos a voltas no calçadão de dedos dados. Idas rápidas a banca de jornal. Idas mais rápidas ainda a casa um do outro.
A mocinha não entendia as novas atitudes do mocinho e se esquivava em seu mundo. Ia mais a casa das amigas a procura de resposta. Nem os amigos do mocinho entendiam o motivo. A mocinha ligava para o mocinho e nenhum retorno. A mocinha mandava torpedos e o mocinho respondia duas, três horas depois. E ela ia dormir com o celular debaixo do travesseiro. E chorava. E se sentia culpada. E um belo dia, passarinhos cantando na janela mocinho ligou e disse que queria um tempo. Ela no fundo esperava por isso, mas precisava ouvir. Precisava ler. Precisava apertar a tecla SAP daquele ser mutante.
A mocinha perdeu a fome. Perdeu a alegria em ver o mar. Perdeu a força para correr no calçadão. Ficava até mais tarde no trabalho. Tentava recuperar todas as amizades perdidas durante o namoro. Ajudava cada amigo recuperado de forma que pudesse ocupar o máximo de tempo. Alugou todos os filmes de ação e guerra disponíveis na locadora. Não podia ver nada romântico. Não comia mais pipoca. Via os filmes tomando água. O gosto das coisas eram sempre os mesmos. A mocinha olhava para o céu e sua visão era turva.
Entre uma das mudança de fases da lua a mocinha resolveu seguir os conselhos dos amigos. Não ligou mais para o mocinho. Começou aos poucos a retomar a sua vida. A mocinha começou a reparar novamente no mar a sua volta. Nas noites estreladas. Na boa amizade das pessoas. Até nas paqueras enquanto caminhava. Uma noite a mocinha viu o mocinho correndo na companhia de outra. Ficou mal. Ligou para o mocinho na mesma noite e ele disse que entendia que era mesmo uma pena. E fez um imenso favor de dizer que a mocinha poderia ligar sempre que se sentisse sozinha. Que ele compreendia essa necessidade dela falar com ele. E quando questionado do por que estar com outra por aí o mocinho limitou-se a responder: era preciso.
A mocinha quebrou todos os presentes dados por ele. Gritou até a garganta doer. Até a voz sumir e aos poucos como uma pessoa em reabilitação voltou a andar. Corria na praia por mais horas. Chegava a casa exausta e ia dormir. Deletou os telefones do mocinho. Esqueceu que um dia teve um mocinho que a esperava e deixou que a vida a tomasse de volta. Entre novas amizades a mocinha conheceu um alguém. Um alguém agradável. Um alguém que contou estrelas com ela nas noites mais frias e esperou pacientemente o cair de uma estrela cadente para fazer um pedido.
Uma tarde dessas o telefone da mocinha toca. Era o mocinho. Dizendo que tinha se decidido. E que estava pronto para retomar o amor. O mocinho achava que a vida era como os filmes em que ele assistia no vídeo cassete. O mocinho havia dado um “pause” na vida da mocinha e na cabeça dele era mais do que justo que o “play” voltasse a reinar. O mocinho esqueceu que a vida da mocinha corria paralela a dele. Que o sangue que corria nas veias dele também corria nas dela. Que as mesmas sensações que ele tinha ela também tinha. Que o mesmo gosto de sorvete de morango ao encostar a língua do mocinho era o mesmo o dela. Que a mesma emoção ao ver o pôr-do-sol que deixava os olhos dele cheio de lágrimas também despertava a mesma sensação nos olhos dela.
O amor espera. O amor aguarda ansiosamente no fundo do peito. O amor entende que pontes foram trincadas, mas ainda assim espera que a obra termine. O amor suporta transparências. O amor suporta conversas francas. O amor doa. O amor cede. Quando o dono do amor o trata de forma menos nobre ele responde de forma inesperada. Quando alguém decide apertar o “pause” para outro alguém deveria ler atentamente o manual. E para os menos desatentos as letras aparecem miúdas, para os mais espertos as letras estão iluminadas: não tente frear, paralisar, colocar em stand by o amor de quem você ama. Por acaso você consegue fazer com que a água de um riacho pare de correr? Você pode até tentar fazer uma represa e reservar a água ali por um tempo, mas água parada não tem vida, perde a transparência e corre rio abaixo pesada e turva.